A lei complementar nº 123
(Estatuto Nacional da Microempresa e da Empresa de Pequeno Porte), de 14 de
dezembro de 2006, trouxe mudanças significativas em relação à participação e
tratamento de microempresas e empresas de pequeno porte nas licitações públicas.
Uma das principais inovações diz
respeito à regra de preferência nas hipóteses em que ocorrer empate na
licitação. Entretanto não se trata de um empate ipsis litteris, mas sim de uma
espécie de ficção de empate por aproximação.
É cediço que a Lei Complementar
n. 123/2006 foi editada para estabelecer regras de tratamento diferenciado às
micro e pequenas empresas, em atendimento ao disposto nos arts. 170, inciso IX,
e 179 da Constituição da República de 1988, com o desígnio de fomentar seu
desenvolvimento econômico. Noutro dizer, o legislador pátrio elegeu o poder de
comprar do Estado como ferramenta veiculadora de políticas públicas.
Dentre as regras gizadas pelo
diploma retro, o Capítulo V - Do acesso aos mercados - contempla inovações no
ordenamento jurídico ao conferir determinados privilégios às ME e EPP para
participar de licitações, criando condições favoráveis à obtenção de
contratações administrativas, entre as quais, destaca-se em especial, as regras
de preferências nos casos de empate, consoante disciplinado na Lei Complementar
n. 123/2006, notadamente no seu art. 44, a saber:
"Art. 44. Nas licitações será
assegurada, como critério de desempate, preferência de contratação para as
microempresas e empresas de pequeno porte.
§ 1º Entende-se por empate aquelas
situações em que as propostas apresentadas pelas microempresas e empresas de
pequeno porte sejam iguais ou até 10% (dez por cento) superiores à proposta
mais bem classificada.
§ 2º Na modalidade de pregão, o intervalo
percentual estabelecido no § 1º deste artigo será de até 5% (cinco por cento)
superior ao melhor preço."
O dispositivo sub oculo revela
hipótese legal do empate "ficto" ou "presumido" ao
mencionar que as propostas apresentadas pelas ME e EPP iguais ou até 10%
superiores à proposta mais bem classificada (no caso de pregão 5%) serão consideradas
empatadas.
Sobre a regra especial de
desempate em favor das ME´s e EPP`s, mister se faz trazer a baila a doutrina do
procurador federal André Luiz Santa Cruz Ramos :
“Em primeiro lugar, cumpre esclarecer o que
a Lei Geral entende exatamente por empate. Ao contrário do que se pode
imaginar, esse empate de que trata a lei não ocorre apenas quando a proposta de
uma ME ou EPP for igual à melhor proposta oferecida por uma empresa normal, mas
também quando a diferença entre elas é muito pequena. É o que diz o §1º do art.
44, segundo o qual “entende-se por empate aquelas situações em que as propostas
apresentadas pelas microempresas e empresas de pequeno porte sejam iguais ou
até 10% (dez por cento) superiores à proposta mais bem classificada ...
... Vê-se, pois que a Lei Geral criou o que
já se está chamando de empate ficto ou ficção de empate, uma vez que configura,
juridicamente, não apenas quando houver mais de uma proposta com valores
indenticos, “mas também serão consideradas como empate as situações em que a
diferença entre as propostas se enquadre num determinado limite porcentual”, o
qual no pregão é de 5%, enquanto nas demais modalides licitatórias é de 10%.”
Cristiana Fortini explica que :
“O § 1º e o §2º do art. 44 da LC criam, ao
lado do empate real, o empate ficto, se as propostas equidistarem umas das
outras (tomando como referência a proposta inicialmente melhor colocada) dentro
de um intervalo de 10% para as modalidades tradicionais e 5% no caso de adoção
do pregão. O empate aqui mencionado é o relativo ao preço. O empate real é
possível apenas nas modalidades tradicionais, porque no pregão, ainda que não
se exija a renovação de lances, não se permite a repetição de proposta ofertada
por terceiro.
Vale dizer, se a proposta mais bem situada
for de R$ 100,00, todas as propostas, apresentadas por micro ou pequenas
empresas, iguais a ela (como dito, possível apenas no caso de emprego das
modalidades tradicionais) e todas as que não a ultrapassarem em mais de 10%
(modalidades tradicionais) ou 5% (se for pregão) serão consideradas empatadas.
Assim, estarão empatadas as propostas das micro ou pequenas empresas que não
ultrapassarem R$ 110,00 (cento e dez reais) ou R$ 105,00 (cento e cinco reais),
a depender da modalidade de licitação em uso.
Ocorrendo o empate ficto conforme art. 44 da
LC. 123/2006, o art. 45 da mesma lex encarrega-se de disciplinar os seguintes
procedimentos: a) a ME ou EPP mais bem classificada poderá oferecer proposta de
preço inferior àquela considerada vencedora do certame, situação em que será
adjudicado em seu favor o objeto licitado; b) se a ME ou EPP mais bem
classificada não apresentar proposta de preço inferior, serão convocadas as
remanescentes, na ordem classificatória, para o exercício do mesmo direito; c)
no caso de serem idênticos os valores das propostas originais apresentadas
pelas ME e EPP, será realizado sorteio entre elas para que se identifique
aquela que primeiro poderá apresentar melhor oferta.”
O mestre Andre Luiz Santa Cruz
Ramos continua lecionando :
“Assim sendo o “empate”, e uma vez
caracterizado, prevê o art. 45 da Lei Geral três soluções distintas. No inciso
I, prevê a lei que “ a microempresa ou empresa de pequeno porte mais bem
classificada poderá apresentar proposta de preço inferior àquela considerada
vencedora do certame, situação em que será adjudicado em seu favor o objeto
licitado ...
... Caso a faculdade prevista no inciso I
não seja exercida pela ME ou EPP respectiva, o inciso II estabelece uma outra
solução, prevendo que “não ocorrendo a contratação da microempresa ou empresa
de pequeno porte, na forma do inciso I do caput deste artigo, serão convocados
as remanescentes que porventura se enquadrem na hipótese dos §1º e 2º do art. 44 desta Lei Complementar na ordem
classificatória, para o exercício do mesmo direito”. Veja-se que a lei não
estabeleceu que sejam convocados todas as ME`s e EPP´s participantes do certame
licitatório para que eventualmente exerçam a faculdade constante do §1º. Serão
chamadas apenas as ME`s ou EPP´s que tenham oferecido proposta que se enquadre
nos limites percentuais previstos no art. 44, §1º e 2º.Se não houver nenhuma
outra ME ou EPP nessa situação, então serão considerada vencedora a empresa
normal que se classificou em primeiro lugar ...
... Pode ser ainda que as ME´S ou EPP´s que
se enquadrem na previsão normativa do inciso II, analisada acima, tenham
oferecido, originalmente, propostas equivalente, hipóteses em que se aplicará a
regra do inciso III: no caso de equivalência dos valores apresentados pelas
microempresas e empresas de pequeno porte que se encontrarem nos intervalos
estabelecidos nos §1º e §2º do art. 44 desta Lei Complementar, será realizado
sorteio entre elas para que se identifique aquela que primeiro poderá
apresentar melhor oferta.”
Como se vê, a norma estabelece um direito de
preferência às EPP e ME para em caso de empate (real ou ficto) apresentarem
propostas menor do que aquela que, em condições normais, seria a vencedora da
disputa.
A lei conferiu uma segunda chance
a elas, sendo-lhes facultado alterar, posteriormente, a sua proposta original,
de modo a que esta passe a ser inferior à proposta inicialmente classificada em
primeiro lugar. Se elas assim o fizerem, serão consideradas vencedoras.
Nessa toada, o doutrinador Joel
de Menezes Niebuhr ensina que :
“A rigor, reconhecendo-se o empate, na
forma dos parágrafos do art. 44 da Lei Complementar 123/06, a microempresa ou
empresa de pequeno porte mais bem classificada faz jus à oportunidade de
oferecer proposta de preço inferior à proposta de preço até então considerada vencedora
do certame, conforme dispõe o inc. I do art. 45 da mesma lei complementar.
Enfatiza-se que não basta à microempresa ou empresa de pequeno porte igualar o
menor preço até então ofertado. A microempresa ou empresa de pequeno porte mais
bem classificada deve cobrir o menor preço até então ofertado, reduzi-lo. Se o
fizer, prescreve o referido inc. I do art. 45 da Lei Complementar, o objeto da
licitação deve ser adjudicado a ela.”
O professor José Anacleto Abduch
Santos, por sua vez, ministra que :
“Como a lei não estabelece qualquer
parâmetro para esta nova proposta, qualquer valor menor do que a proposta
original deve ser reputado suficiente para que o desempate se efetive (proposta
apenas R$ 1,00 menor do que a original, por exemplo).”
Cumpre mencionar que a Lei nº
11.488, de 15 de junho de 2007, estendeu às cooperativas os mesmos benefícios
outorgados às microempresas e empresas de pequeno porte nas licitações,
conforme se verifica no seu art. 34:
Art. 34.
Aplica-se às sociedades cooperativas que tenham auferido, no
ano-calendário anterior, receita bruta até o limite definido no inciso II do
caput do art. 3o da Lei Complementar no 123, de 14 de de-zembro de 2006, nela
incluídos os atos cooperados e não-cooperados, o disposto nos Capítulos V a X,
na Seção IV do Capítulo XI, e no Capítulo XII da referida Lei Complementar.
As disposições contidas na Lei
Complementar nº 123/06, relativas ao critério de desempate para microempresas,
são auto-aplicáveis, ou seja de obrigação pela Administração Pública. Isso
significa que ele deve ser reconhecido independente de requerimento da pequena
empresa ou de previsão editalícia, pois se trata de uma determinação legal
imperativa do art. 22, inc. XXVII da CF/88 .
O entendimento do Tribunal de
Contas da União no Acórdão nº 702/2007-Plenário, o Ministro Benjamin Zymler
sinalizou no sentido de:
“Apesar da ausência de previsão editalícia
de cláusulas que concedam a estas categorias de empresas os benefícios
previstos nos art. 45 e 46 da lei supradita, não há impedimentos para a
aplicação dos dispositivos nela insculpidos. Tais disposições, ainda que não
previstas no instrumento convocatória, devem ser seguidas, vez que previstas em
lei. Cometerá ilegalidade o Sr. Pregoeiro caso, no decorrer do certame,
recuse-se a aplica-las, se cabíveis.”
A jurisprudência dos Tribunais Pátrios também
caminha com este entendimento a julgar MS de autoridades coatoras que
descumpram o tratamento diferenciado disposto na lei geral, vejamos:
Ementa: APELAÇÃO EM MANDADO DE SEGURANÇA.
LICITAÇÃO E CONTRATO ADMINISTRATIVO. EMPATE FICTO. LEI COMPLEMENTAR Nº 123/06.
CRITÉRIO DE DESEMPATE PARA MICROEMPRESAS. NORMAS AUTO-APLICÁVEIS. PREÇO
PROPOSTO EM UM DOS ITENS SUPERIOR AO TETO ESTABELECIDO NO EDITAL QUE NÃO
AUTORIZA DESCLASSIFICAÇÃO DO CERTAME. PROPOSTA INTEGRAL INICIALMENTE
APRESENTADA PELA IMPETRANTE QUE NÃO É SUPERIOR A 10% EM RELAÇÃO À PROPOSTA
MELHOR CLASSIFICADA. ILEGALIDADE DO ATO PRATICADO PELA AUTORIDADE COATORA.
VERIFICAÇÃO DE RISCO DE DANO DE DIFÍCIL REPARAÇÃO PARA A IMPETRANTE E PARA A
ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA. DECISÃO INTERLOCUTÓRIA REFORMADA PARA A CONCESSÃO
LIMINAR DA SEGURANÇA PLEITEADA. REJEITADA A PRELIMINAR À UNANIMIDADE. APELAÇÃO
PROVIDA, POR MAIORIA, VENCIDO O RELATOR. (Apelação Cível Nº 70039838073,
Segunda Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Arno Werlang, Julgado
em 19/01/2011) (grifos nossos)
Sendo assim, por força do
disposto no art. 40 da Lei 8.666/93, é inafastável a obrigação da Administração
Pública de incluir nos instrumentos convocatórios da licitação (lei interna do
certame) tudo o que for necessário para dar efetividade ao tratamento
diferenciado e favorecido previsto na Lei Complementar 123/2006 em favor das
microempresas, empresas de pequeno porte e cooperativas, sob pena de invalidade.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BRASIL. Lei Complementar n. 123, de 14
de dezembro de 2006. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/LCP/Lcp123compilado.htm>.
Acesso em
08/08/2012.
FORTINI, Cristiana. Micro e pequenas
empresas: as regras de habilitação, empate e desempate na Lei Complementar nº
123 e no Decreto nº 6.204/07. Fórum de Contratação e Gestão Pública – FCGP,
Belo Horizonte, ano 7, n. jul. 2008.
JUSTEN FILHO, Marçal. O Estatuto da Microempresa e as licitações
públicas - 2. ed. rev. e atual., de acordo com a Lei Complementar 123/2006 e o
Decreto Federal 6.204/2007. São Paulo:
Dialética, 2007.
MONTEIRO, Flavia Santos. A
imperatividade da regra do “desempate” de propostas prevista nos artigos 44 e
45 da Lei Complementar nº 123/2006. Informativo Justen, Oliveira e Talamini,
Curutiba, nº 9, nov/2007, disponível em http://www.justen.com.br//informativo.php?l=pt&informativo=9&artigo=318,acesso
em 08/08/2012
NIEBUHR, Joel de Menezes. Repercussões
do Estatuto da Microempresa e das Empresas de Pequeno Porte em Licitação
Pública. Revista Zênite de Licitações e Contratos – ILC, n. 157, mar.2007.
RAMOS, André Luiz Santa Cruz. Curso de
Direito Empresarial. Bahia. JusPODIVM, 2009 .
SANTOS, José Anacleto Abduch.
Licitações e o Estatuto da Microempresa e Empresa de Pequeno Porte. 1. ed.
Curitiba: Juruá, 2008.
TRIBUNAL DE CONTAS DA UNIÃO – Acórdão
nº 702-2007 – Plenário – Benjamin Zymler
TRIBUNAL DE CONTAS DA UNIÃO – Acórdão
nº 2505-2009 – Plenário – Augusto Nardes
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO RIO GRANDE DO
SUL - Apelação Cível Nº 70039838073, Segunda Câmara Cível, Tribunal de Justiça
do RS, Relator: Arno Werlang, Julgado em 19/01/2011